segunda-feira, 25 de maio de 2015

Prisioneiras de guerra (parte 1)

França, 1942. Aquela noite, numa aldeia situada não muito longe de Paris, no departamento de Yvelines, era de retribuição. No dia anterior, um comboio que transportava víveres para as tropas do III Reich fora dinamitado para fora da linha à passagem da estação que servia a aldeia, provocando a morte do maquinista e do fogueiro que operavam a locomotiva. Quando a notícia se soube, os soldados alemães invadiram a povoação, de armas em punho, controlando tudo e todos. Estranhamente, não se disparou um tiro, não se ouviu um grito: os soldados limitaram-se a ficar nas suas posições, atentos a todo o movimento, de armas engatilhadas. Assim que a escuridão caiu sobre aquela zona, começou a acção: os soldados irromperam por todas as casas, de uma ponta à outra da povoação, retirando à força todas as mulheres, novas ou velhas, e alinharam-nas na praça central, de mãos amarradas atrás das costas e a olharem para o chão, a maioria delas com olhos cheios de lágrimas e a tremer de medo. Os homens foram fechados em casa, com as suas lutas contra os captores a serem detidas à coronhada e bastonada – os soldados haviam recebido ordens de não dispararem um tiro, excepto em casos excepcionais.

 
Aquela praça central estava dividida em duas zonas: de um lado, cerca de duzentos soldados alemães, impecavelmente trajados, alguns de armas a tiracolo, outros de metralhadoras apontadas para o outro lado, onde estavam perto de cem mulheres, vestidas das mais variadas formas, todas de pulsos atados atrás das costas e controladas por uma fileira de alguns vinte soldados se encontravam na retaguarda das cativas, impedindo qualquer tentativa de fuga.
Então, as fileiras abriram-se para a passagem de uma mulher. E se as prisioneiras não estivessem tão aterrorizadas, talvez tivessem reparado na deferência que os soldados tinham para com aquela recém-chegada, afastando-se dela sem qualquer palavra nem hesitação, colocando-se imediatamente em sentido. A mulher vestia um fato de duas peças de cabedal justo ao corpo, acentuando-lhe de certa forma as curvas; nos ombros e colarinhos da farda trazia as suas divisas de oficial do exército nazi; à cintura, um cinturão com uma fivela onde a Reichsadler brilhava imaculadamente, dotada de inúmeras bolsas, tendo numa delas a sua fiel pistola Luger P.08; e, na cabeça, o boné regimental, tendo o cabelo escuro preso num carrapito. 
Não havia muitas mulheres graduadas nas forças armadas alemãs; todavia, a Reichskriminaldirektor Nadja Schwarzenbeck havia-se tornado um nome temido pelos opositores do Reich. Ela entrara para a SS-Helferinnenkorps mas, depois de alguns tempos em Ravensbrück, acabara por passar para a temível Gestapo. Ganhando a fama de conseguir vergar todas as pessoas que lhe passavam pelas mãos sem qualquer ponta de piedade ou remorso, começou a tornar-se conhecida dentro da estrutura nazi, ao ponto de ser chamada para os detidos mais importantes ou os interrogatórios mais difíceis. Naquela altura, ela estava destacada na zona de Paris, tendo-lhe sido atribuído o comando de um destacamento militar, o mesmo que agora ameaçava as moradoras daquela aldeia…
- Boas noites, caríssimas! – gritou Nadja, olhando para as detidas. Nenhuma delas respondeu.
- Bem, que gente tão tímida… – continuou ela, aparentemente desiludida – Não sei se vocês me conhecem, minhas queridas, mas adiante: o meu nome é Nadja Schwarzenbeck e, dentro dos limites deste departamento, eu sou a máxima autoridade.
Depois daquela introdução, Nadja começou a passear por entre as mulheres capturadas, olhando atentamente para elas, observando-as, de alto a baixo, perscrutando-as em busca de algo desconhecido. Entretanto, ela recomeçara a falar:
- Vocês estar-se-ão a perguntar o que fazem aqui, porque estão em plena praça central sob a mira de dezenas de armas. Bom, o que se passa é o seguinte: ontem, pessoas cobardes e sem qualquer respeito pela vida humana provocaram o descarrilamento de um comboio à passagem da vossa aldeia, causando a morte de duas pessoas inocentes, duas pessoas como vós, que trabalham, que têm família. – Nadja fez uma pausa, enquanto acariciava o rosto de uma rapariga com pouco mais de vinte anos; ela reagiu afastando-se da nazi – Claro que poderíamos tentar encontrar os culpados, e talvez os encontrássemos… mas de que adiantaria isso? Caso os traidores autores deste atentado assassino fossem encontrados e fuzilados, como mereciam, isso só daria azo a que outros os tentassem vingar e prosseguir a sua obra de terror e desestabilização do país. E eu abomino que haja mortes: tanto, que partiu de mim a ordem de não haver tiros hoje aqui, e podem acreditar que havia alguns soldados com bastante vontade de vos passar todos a balas. Acho que há outras formas de dissuadir mais actos de violência.
Acabando o seu discurso, ela agarrou na rapariga que estava mais próxima de si, arrastando-a na direcção dos soldados e entregando-a a dois deles, que a ficaram segurando com toda a força, tornando inúteis as suas tentativas de fuga. Logo a seguir, Nadja voltou ao grupo de mulheres, escolhendo outra e trazendo-a à força para junto da primeira, ignorando os choros e protestos. Houve uma ou duas que tentaram fugir, mas que se detiveram ao som dos disparos para o ar dados por um dos soldados. A agente da Gestapo escolheu um grupo de trinta raparigas, todas sensivelmente entre os vinte e os trinta anos, que os soldados se apressaram a meter na caixa de duas camionetas do exército alemão. Assim que o taipal da última se cerrou, Nadja voltou-se para as restantes.
- Basicamente, minhas queridas, o que se vai passar é isto: estas vossas trinta conterrâneas vão passar a ser nossas convidadas. Nada de mal lhes vai acontecer… a partir do momento que a situação acalme por aqui e que os focos de resistência amainem. No caso de voltar a haver mais atentados, ou qualquer espécie de acto violento da vossa parte, o cadáver de uma das nossas convidadas será deixado aqui na praça. Por isso… façam passar a mensagem de que o bem-estar destas meninas está nas vossas mãos – nas vossas e nas dos vossos maridos.
Dito isto, ela deu ordens aos soldados para ficarem a controlar a situação e retirou-se, entrando para dentro de umas camionetas e partindo com metade do destacamento para parte incerta. Enquanto isso, as tropas restantes soltavam os homens, para de seguida desaparecerem também.

Os veículos alemães, dois deles cheios de raparigas assustadas, detiveram-se num grande largo a cerca de dez quilómetros da aldeia. À frente deste, situava-se um mosteiro franciscano abandonado metido numa formação rochosa, ocupado até poucos anos antes por um grupo de eremitas; estes foram desalojados pelo exército nazi, que deixara aquele espaço ao abandono até Nadja Schwarzenbeck tomar conhecimento daquele complexo e decidir ocupá-lo para seu uso pessoal. O facto do espaço em si ser esquálido e algo claustrofóbico não deteve a oficial da Gestapo: ela própria tratara da limpeza do espaço, requisitando alguns moradores de uma outra aldeia não muito distante dali para o efeito. 
O convento consistia em quatro níveis de construções, todos eles enclavinhados entre as rochas onde foram escavadas as diversas divisões. Tal como os frades da ordem de São Francisco que construíram aquele complexo pregavam, o mosteiro era desprovido de luxos ou comodidades de qualquer espécie. As celas onde os frades pernoitavam, que estavam situadas no segundo nível, eram exíguas – as suas portas eram de altura inferior à de um homem – e despidas de qualquer espécie de decoração ou local de arrumo. Os corredores interiores eram estreitos, de paredes nuas e apertadas mas dotadas de entalhes de cortiça, que serviam para dar um conforto mínimo nas noites frias de Inverno. O quarto e último nível, todavia, era bastante diferente. Constituído, originalmente, apenas por uma cela convencional, uma biblioteca e uma espécie de escritório, Nadja havia escolhido aquela área para os seus aposentos privativos e providenciado para transformarem aquela área em algo mais confortável. Assim, as paredes de pedra nua haviam sido cobertas por tapeçarias oriundas da Bélgica, o chão por peles de ovelha no chão e havia sido colocado a um canto um aquecedor a lenha – que, naquela altura do Inverno, era algo imprescindível. A parede que separava quarto e escritório havia sido demolida e refeita para aumentar a área do quarto, reduzindo um pouco o tamanho da outra divisão, onde Nadja havia guardado as suas posses. O lado da biblioteca, um pouco mais desviado dos outros dois, servia como armazém de víveres para Nadja.
No largo, as raparigas estavam a ser forçadas a sair dos camiões. Sempre sob a ameaça das metralhadoras, as cativas foram sendo novamente alinhadas, desta feita em frente do portão principal, iluminado por fortes holofotes eléctricos. Não havia nenhuma rapariga que não estivesse de olhos encharcados e a tremer como varas verdes.
- Meninas, bem-vindas à vossa nova casa durante os próximos tempos! – sorriu Nadja – Não sei se vocês sabem, mas isto foi, em tempos, um convento de frades menoritas, gente desprovida de posses materiais. Por isso, infelizmente, não vos podemos dar muito. Mas é o que temos. – fez uma leve pausa e continuou – Vocês agora vão ser divididas em grupos, porque infelizmente não temos celas para vocês todas. Poderemos ter de colocar três e quatro meninas na mesma cela. Também ajudam a manter-se quentes nestas noites gélidas que temos tido… vamos entrando, sim?
Os soldados levantaram as armas e as raparigas, sem outra opção, foram andando atrás de Nadja, que liderava aquele pelotão. Após passarem a entrada, as enormes e pesadas portas de ferro forjado foram fechadas, fechando toda a gente naquele complexo. O pelotão continuou por um terreiro com chão de areia fina rodeado, como não poderia deixar de ser, de paredes altas de rocha coberta por vegetação. Aqui e ali havia candeeiros eléctricos. Então, Nadja deteve-se defronte da primeira construção, uma espécie de “hall” telhado com diversas portas. De uma dessas portas surgiu um grupo de soldados femininos, munidos de algemas metálicas, correntes, facas, sacas de serapilheira com buracos e lenços. Sem esperarem por qualquer ordem, elas atiraram-se às raparigas, rasgando-lhes as roupas por completo até ficarem nuas e vestindo-lhes as sacas, trocando-lhes as cordas que lhes prendiam os pulsos por algemas, e amordaçando-as. Muitas delas tentaram debater-se e fugir, resistiram às oficiais, mas inutilmente, pois, uns dez minutos depois, todas elas já estavam com o novo visual: amordaçadas, de pulsos algemados e tornozelos acorrentados, a vestir unicamente uma saca de serapilheira e de pés nus.
Nadja deliciara-se com aquele espectáculo de ver as suas subordinadas a aprontar as cativas. Quando a acção serenou, ela bateu as palmas.
- Meninas, meninas! Agora que já todas estão prontas, vamos tratar de vos aconchegar nos vossos quartos. Senhoras, comecem. – e acenou na direcção de uma delas. 
As mulheres germânicas começaram a agarrar nas raparigas em grupos de três e de quatro, arrastando-as pelos corredores estreitos do convento. Uma das portas que estava naquele “hall” dava para uma cela algo apertada e bafienta e lá foram colocadas quatro das cativas. O restante grupo foi conduzido para diante, passando pela porta estreita e avançando, sempre com Nadja à cabeça, por um corredor estreitinho que conduzia ao complexo principal de celas. E, em comparação com aquelas, a primeira cela era um quarto no Ritz, pois o espaço que cada uma elas dispunha era extremamente diminuto, quase parecendo casas para anões. Até era difícil perceber como uma pessoa conseguiria estar ali… mas Nadja, sem complacência, pegou numa cativa e enfiou-a pela porta minúscula de uma delas, para depois agarrar em mais uma rapariga e espremê-la pela abertura, fechando a portinhola posteriormente.
- Espero que nenhuma de vocês seja claustrofóbica. – gritou a oficial da Gestapo – Assim aproveitam para se aquecer uma com a outra!
Nadja riu-se da sua piada, depois olhou para as restantes raparigas, parecendo escolher alguém; depois sorriu, agarrou numa delas com força e virou costas, ignorando os protestos da cativa arrastada à força.
- Continuem, meninas! – ordenou para as suas subalternas – Eu vou-me retirar, que hoje foi um dia muito cansativo. Heil Hitler!
- Heil Hitler! – responderam em uníssono as oficiais, continuando a empurrar raparigas para dentro daquelas celas exíguas. Os gemidos abafados das pobres cativas enchiam o ar.

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