quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A história de Ana (parte 2)

(continuação...)

Nos dias seguintes, passámos algum tempo a comprar roupa para mim (e um par de botas iguiazinhas às da Andreia – ainda me estavam na cabeça, acreditem ou não!), falando e rindo juntas. Aparentemente, depois dela ter fugido de casa, ela tentou encontrar a Amélia e a Ângela, mas não conseguiu, e teve de viver na rua durante algumas semanas, até que uma velha prostituta (“velha”, relativamente falando: tinha à volta de quarenta anos, mas tinha uma aparência bem mais jovem, parecendo ainda estar na casa dos trintas) a encontrou e lhe deu abrigo, com um preço: Andreia teria de trabalhar com ela e para ela. Ela pensou em fugir novamente, mas, não querendo ser ingrata para alguém que a havia ajudado, aceitou, contrafeita. Para surpresa da minha irmã, os anos de abuso sofridos às mãos de Estèlle foram dando jeito, utilizando os conhecimentos que adquirira para proporcionar prazer tanto aos homens e mulheres que a procuravam para terem sexo com ela. Num par de anos, ela havia arranjado dinheiro suficiente para acabar a escola, estudando de dia e vendendo o corpo de noite.

 
Então, ela acabou o 12º e decidiu dar uma volta de 180º à sua vida. Falou com a prostituta, falando-lhe dos seus planos, passou por casa da sua ex-mãe adoptiva para me ir buscar… e, uns dias depois, estaríamos em Portugal, o país natal de Papá, e um local onde Andreia tinha contactos e conhecimentos – e foi tudo o que ela me disse quando a interroguei sobre esse assunto.
Fixámo-nos em casa dum dos amigos da minha irmã, perto da Costa da Caparica. A casa estava desabitada, por isso podíamo-nos mover à nossa vontade. Durante alguns dias, passámos tempo juntas, celebrámos o meu 18º aniversário (onde ela me ofereceu o meu primeiro piercing, no umbigo como o dela) – basicamente, estávamos a compensar os anos que havíamos estado separadas. Depois disso, ela começou a trabalhar num bordel ao pé de nós, enquanto eu lhe pedia para me tirar algumas fotos, tanto em lingerie como em roupas normais, e enviá-las para revistas e agências de moda. Porquê? Bom… desde que Andreia me disse que alguns dos seus amigos haviam ficado impressionados comigo, com a minha aparência e com o meu corpo – apesar de, como já ter dito, eu e a minha irmã sermos bastante parecidas – decidi mandar às urtigas os meus receios e a minha vergonha e tentar ver se conseguia tornar-me modelo. Se não desse em nada… bom, caixa de supermercado não soava muito mau.
Numa sexta-feira à noite, Andreia bateu à minha porta. Eu estava a ler um livro.
- Mana, queres sair?
- Para onde?
- Divertirmo-nos. Descarregar energias. Relaxar.
- Bem… OK. – suspirei enquanto atirava o livro para cima da cama – Que devo vestir?
Ela abriu a porta e eu quedei-me a olhar para ela, espantada: ela envergava uma blusa transparente, que mal cobria os seus seios firmes e revelava os seus mamilos furados, uma mini-saia muito curta, e botas altas de cabedal pretas. Ela riu-se.
- Assim.
- Estás maluca do juízo?! Eu não posso sair à rua vestida assim, como uma…
- … puta? – Andreia piscou-me o olho – Não há problema, maninha, ninguém se vai meter contigo, vamos sair com uns amigos meus, malta de confiança e que não te fará nada. Além do mais… precisas de te descontrair, ser mais aberta.
- Mas… – comecei.
- Mas, nada. As roupas estão no teu roupeiro, assim como as botas, e eu estou à tua espera no hall de entrada. – e, dito isto, ela virou-se e saiu.
O meu coração batia descontroladamente. Nunca havia feito nada assim na minha vida, aparecer em público quase nua…mesmo que a minha irmã garantisse que era na boa. No entanto, eu queria ir, divertir-me, tentar esquecer os anos de prisão que havia vivido, os pesadelos que ainda tinha…
- Merda.
Levantei-me e abri a porta do roupeiro.

Fomos a uma discoteca na Caparica, o “Remédio Santo”. Como alguns dos rapazes que iam connosco conheciam a gerência da discoteca, não houve problemas para entrar,as lembro-me do porteiro ter-nos mirado, a mim e à minha irmã, de cima a baixo, com cara de caso. Fiquei preocupada e, por momentos, lamentei a minha decisão de sair de casa, mas acabei por ir atrás deles.
Lá dentro, o espaço era agradável e estava algo cheio. Um DJ estava a passar House, com alguma gente no meio da pista a dançar, enquanto nos sentávamos na única mesa livre que restava. Um dos rapazes foi buscar bebidas para o resto do grupo, e eu tive um arrepio quando vi um copo com algo laranja ser colocado à minha frente.
- O que é isto? – perguntei-lhe.
- Vodka com laranja. Prova, vais adorar.
Fi-lo. Ardia na garganta, mas não era mau.
Quando os nossos copos se esvaziaram, Andreia agarrou-me pela mão e levou-me para a pista, assim que o DJ meteu uma música que ela adorava. Começámos a dançar bem junto uma da outra, movendo-nos lentamente ao som da música, e eu fechei os olhos, sentindo a sua vibração, os seus acordes. Quando os abri novamente, quase dei um salto para trás: a minha irmã estava a meros centímetros de mim, os seus lábios bem próximos dos meus! Pisquei os olhos, confusa, e comecei a dar passos para trás, mas ela abraçou-me e beijou-me, ali mesmo, no meio da pista, com os amigos dela a ver! Senti a sua língua a entrar na minha boca, as suas mãos a navegarem pelo meu corpo… e o mais estranho é que eu estava a responder aos seus estímulos da mesma forma!! Então, ela recuou, olhando para mim e abanando a cabeça. Eu podia notar que até ela estava confusa… no entanto, nos seus olhos estava ainda presente o desejo.
Não sei quanto à minha irmã, mas para mim, o grande culpado de tudo o que aconteceu naquela noite em que eu estive envolvida foi o álcool. Porque, quando regressámos aos nossos lugares, havia mais um copo de vodka com laranja à nossa espera, em cima da mesa, e, sabendo que eu nunca tinha bebido bebidas alcoólicas, bem… apenas me consigo lembrar de dançar bem próximo de Andreia, no meio dos nossos amigos, trocando linguados de quando em vez, despindo-lhe a blusa connosco em cima da sua própria cama, beijando-nos loucamente… e de acordar, na manhã seguinte, apenas de collants – rasgados na zona do baixo ventre – e botas, com uma dor de cabeça monstruosa. Olhei para o outro lado da cama, e a minha irmã estava lá, completamente nua, ainda a dormir.
Abanei a cabeça. O que raio se havia passado naquela noite? Teria eu tido sexo com a minha própria irmã? Ou teríamos estado envolvidas nalguma espécie de orgia onde os outros participantes já se tivessem ido embora? Ou…? Fui até à cozinha para tentar encontrar alguma coisa para a minha desgraçada cabeça, mas acabei por me limitar a sentar-me numa cadeira, à mesa, com a cabeça entre as mãos.
- Que se passa, mana? – ouvi a voz de Andreia, fraca, um pouco depois, quando entrou na cozinha. Ela continuava nua… mas, de qualquer modo, eu não estava muito melhor.
- Ai, a minha cabeça… – gemi.
- Toma. – e deu-me uns comprimidos para a ressaca.
- Obrigado… Andreia, o que raio se passou ontem à noite?!
- Não te lembras? – ela sentou-se perto de mim, com um copo de água à frente e um comprimido igual ao meu.
- Apenas de partes. Nós… nós fizemos amor uma com a outra?!
Lentamente, ela acenou.
- Oh, meu Deus… – levei as mãos à boca, pensando no que eu tinha feito… no que nós tínhamos feito; então, senti algo remexer-se violentamente dentro do meu estômago. Levantei-me e corri até à casa de banho, começando a vomitar assim que me debrucei para a sanita.
- Epah, não sejas assim, também não foi assim tão mau… – ouvi-a dizer, atrás de mim.
- Nós… foda-se! Fizemos o mesmo que ela nos fez! – tive mais um vómito – Meu Deus, nós…
- Ana… – ela aproximou-se e colocou a sua mão sobre as minhas costas, tentando acalmar-me, porém teve o efeito oposto.
- Tira a puta da mão de cima de mim! – gritei.
Ela obedeceu, enquanto eu sentia o meu estômago mais calmo; levantei-me e lavei a cara. Olhando pelo espelho, vi que ela havia ficado magoada com a minha resposta violenta. Olhei para baixo, pensando em toda a situação. Então, voltei-me e abracei-a.
- Querida, desculpa. – beijei o seu ombro – Acho que… que todos os anos de abusos foram acumulando, e acumulando, e eu mantive tudo dentro de mim, até que, agora, o meu depósito explodiu, precisamente na direcção da única pessoa que não o merecia. Peço imensa desculpa… por favor, Andreia, perdoa-me.
Ela não reagiu. Beijei-a no pescoço.
Uma lágrima escorreu-lhe pela cara. Beijei-a na cara.
Ela abriu os olhos, mostrando o quão magoada estava.
- Foda-se.
Beijei-a nos lábios.

E as nossas vidas continuaram. Andreia continuou a trabalhar como acompanhante, enquanto eu consegui um lugarzito numa agência de modelos. Não fazia grande coisa na altura, apenas algumas sessões pequenas e para marcas pouco conhecidas, mas era um bom começo, e significava que eu deixava de estar dependente do dinheiro da minha irmã. No entanto, todas as sextas e sábados, íamos à discoteca (nem sempre era a mesma) e metíamo-nos uma com a outra, provocando alguns dos gajos que por lá estavam apenas porque nos apetecia. E todas as noites acabavam da mesma maneira: com ambas abraçadas e aos beijos. Foi numa dessas noites que conhecemos o homem que iria mudar as nossas vidas para sempre.
Ele era um jovem futebolista chamado Carlos, que, por via das suas capacidades de liderança e voz possante, havia ganho a alcunha de “General”. Tinha cabelo castanho, de média altura e às ondinhas, olhos castanhos, era sensivelmente da minha altura (sem saltos, claro) e parecia bem mais novo do que era – quase um ano mais velho que eu. Não falámos muito, porque estávamos na discoteca, mas eu reparei nos olhares que ele deitou para mim e para Andreia. Para ser honesta, eu interagi com ela mais que nunca naquela noite, apenas para me mostrar perante ele. E acho que ela fez o mesmo.
Foi uns dias depois, durante uma conversa casual num café da Costa, que fiquei a saber que nós éramos mais parecidos do que pensávamos. É que, uns anos antes, ele havia sido molestado sexualmente por duas das directoras do clube onde ele jogava; esses abusos duraram durante dois anos, quando ele se mudou para uma equipa vizinha. Apesar de ele ser bastante novo, ele havia-se casado com dezassete anos com uma rapariga que ele havia engravidado acidentalmente, um casamento que durara dois anos e que terminara quando a sua mulher e filha morreram num desastre de viação.
Ouvi a sua voz falhar quando ele mencionou a sua família perdida, vi a mão de Andreia agarrar na sua, confortando-o. Não sabia o que fazer, mas senti-me triste por ele… no entanto, não o consegui manifestar duma maneira que ele visse. Acho que foi a partir desse momento que Carlos começou a preferi-la em vez de mim, com a minha timidez a calar a minha boca quando ela deveria estar aberta e a falar com ele… e eu recusava sempre beber um vodka ou dois antes de ir ter com ele, pois sabia que isso iria arruinar as minhas já magras hipóteses de o conquistar. Andreia, por seu lado, sendo extrovertida por natureza, conseguia sempre captar a sua atenção, ligava-lhe, falava com ela pela Internet… e, uma noite, chegou mesmo a convidá-lo para o sítio onde ela trabalhava. Antes de irmos para a cama, a minha irmã e eu costumávamos falar uma com a outra acerca dele, e sabíamos que estávamos a competir uma contra a outra por um lugar no seu coração. No entanto, e apesar de sermos as melhores amigas (às vezes até mais que isso), naquela questão éramos rivais.
Um dia, Andreia chegou a casa depois dum passeio com Carlos, e mostrou-me o que ele lhe tinha oferecido: um anel de noivado… felicitei-a, para depois correr para o meu quarto e chorar baba e ranho durante uma ou duas horas. Consegui encontrá-lo uns dias depois, e perguntei-lhe se ele não se estaria a apressar.
- Bem… – respondeu, um pouco inseguro – Talvez isto seja algo precipitado, sim, mas a questão é que eu sinto-me terrivelmente sozinho e preciso de alguém na minha vida. Alguém que seja carinhoso e atencioso, alguém que fale comigo, alguém que me faça rir, alguém que esteja lá quando eu mais precise e me dê um abraço sem pedir explicações…
- Mas eu sou tudo isso, eu posso fazer tudo isso! – gritei, quase histérica.
Ele suspirou e abraçou-me com força.
- Ana, tu és uma boa pessoa, és uma querida, a sério. Não o estou a dizer por dizer, se me conheces sabes que não faço isso. Só que… sinceramente, se falasses mais, se mostrasses o teu interesse de outras maneiras que não olhar simplesmente para mim, se reagisses, se tivesses iniciativa de propor encontros ou de ser espontânea e deixares o que sentes levar a melhor sobre ti, as coisas podiam ter tido outro desfecho. Mas… mas eu não podia esperar mais: eu preciso de alguém, estou farto de estar sozinho…
- Mas… – as lágrimas corriam livremente pela minha cara.
- Linda, desculpa, eu, uhm… eu tenho de ir. Tenho treino daqui a um quarto de hora. – lentamente, ele largou-me e limpou as lágrimas dos meus olhos.  – Eu vou falar com a Andreia; eu tenho uma ideia. Mas… – pareceu querer continuar, depois desistiu e deu-me um beijo de despedida.

O casamento foi marcado para dia 25 de Março de 2000. Ainda me lembro que esse foi um dos piores dias da minha vida… Lembro-me de como Andreia parecia brilhante no seu vestido de noiva, com as lágrimas a caírem-me pela cara, pensando que deveria ser eu dentro daquele vestido; quando o padre chegou à parte do “que fale agora ou que se cale para sempre”, o que mais me apetecia fazer era gritar ao mundo o quanto eu amava aquele homem. Mas não o podia fazer. Apesar de tudo, ela era a minha irmã,e eu não tinha o direito de arruinar a sua vida, o momento mais feliz da sua vida. Não podia ser egoísta… e, assim, perdi a oportunidade de ter a minha alma gémea.
O copo-de-água a seguir foi ainda mais torturante, vendo-os juntos, tão felizes… estive sozinha praticamente todo o tempo no jardim ao pé do restaurante, umas vezes chorando, outras lamentando-me. Mas não havia mais volta a dar.
À noite, quando todos os convidados estavam a ir embora, Andreia aproximou-se de mim, enquanto Carlos estava sentado, sozinho com um copo de champanhe, pensativo.
- Mana, posso falar contigo?
- Sim… – respondi, em tom baixo.
- Eu e o Carlos tivemos uma conversa… Ana, queres vir viver connosco?
Abanei a cabeça.
- O que queres dizer?
- Vamo-nos mudar para uma vivenda na Verdizela… e gostaríamos de te ter connosco.
- Porquê?
A sua mão agarrou a minha, delicadamente.
- Querida, adoro-te tanto, e conheço-te tão bem… eu sei que o amas também, e fazer-te sentir miserável é um fardo que eu não quero carregar. Então…
- Então? – perguntei, a tremer. Estariam eles a propor-me aquilo que eu estava a pensar?
- Podes ser a nossa amante. Tanto minha como dele. O que dizes?
Pronto, efectivamente estavam. Talvez que eu me devesse ter sentido ultrajada e insultada por aquela proposta – ou não, do modo que as coisas acabaram – mas eu concordei. Honestamente, estava-me nas tintas sobre se me estaria a rebaixar… eu apenas queria estar com as duas pessoas que mais amava no mundo.
Andreia beijou-me.
- Não te vais arrepender. Vamo-nos divertir à grande.

(continua...)

Sem comentários:

Enviar um comentário